Monday, November 11, 2013

Aos meus parcos e diletos leitores aqui vai uma beleza diferente e inspirada. Muito mais afável do que o que posto (posto?) corriqueiramente neste hemi-vivo blog.

É o texto de uma querida amiga, Clarice. Mocinha particular, mas não tolhida por isso e, assim, criativa e muito valente. Bem, a ela, ou a parte dela.


78% de Vida

Sempre achei essas falas comuns a um início da conversa muito engraçadas. O famoso “Como está a sua vida?”. A partir daí espera-se que a pessoa diga que está bem e forneça um panorama das áreas: trabalho, relacionamento, projetos, família. E assim, a partir das atualizações a conversa se aprofunda ou se esvai entre algumas respostas vazias, as caras ligeiramente constrangidas e um rápido “Preciso ir agora”.

Desde a infância que mantenho uma amizade consistente com Ricardo e era comum de tempos em tempos procurarmos um ao outro para conversar. Passaram-se 70 anos e me orgulho em dizer que a proximidade sempre permitiu que fôssemos sinceros um com o outro, sem deixar o assunto ser encerrado em um simples “Estou bem”.

As respostas de Ricardo eram abertas, mas havia um padrão em todas elas. Algo refletido pela sua vida e seu comportamento. Ele sempre dizia algo como: “Ta muito boa, mas ainda não está 100%”, ou “Tirando isso está tudo bem”, ou “Eu preciso resolver aquele pepino e acredito que depois disso vai estar tranquilo”.

Aos 16 anos Ricardo queria uma namorada e ansiava todos os dias pelo momento em que poderia dirigir pela primeira vez. Ele se ocupava constantemente por esses pensamentos. Aos 21 ele queria casar e comprar sua primeira casa. Aos 30 ocupava-se planejando o futuro dos filhos. 
Desta mesma forma correram os demais anos de sua vida.

Não eram os planos para o futuro que me intrigavam, mas a forma como ele parecia ocupar cada minuto de sua vida. Ele despendia toda a sua energia em algo que ainda estava para acontecer e que a realização muitas vezes não estava em suas mãos. Pelo menos não naquele momento.

Quando saíamos com os amigos, Ricardo estava sempre compenetrado. Lembro-me que ele retirava um caderno pequeno, vermelho e surrado do bolso. Ao recordar algo, Ricardo fazia questão de escrever e adicionar mais uma à sua imensa lista de tarefas.

Hoje posso dizer, a lista era também interminável. Sempre há algo a ser feito. A cada mês contas novas chegam, o carro que acabou de passar por uma revisão precisa ser lavado. O filho que recentemente passou por uma dificuldade na escola, tem uma consulta com o médico. E da mesma forma, somos constantemente tomados por surpresas positivas: uma festa de formatura, um casamento, uma conquista profissional, uma surpresa de alguém querido.
Esses afazeres são comuns a todos nós, mas Ricardo, no entanto, parecia sempre ansioso, buscando por algo. 
Ele não estava presente, parecia incompleto.

No início eu entendia, éramos adolescentes e havia certa ansiedade em amadurecer, estabelecer-se financeiramente, profissionalmente. Construir uma carreira, ganhar o próprio dinheiro. Conhecer alguém com quem compartilhar tudo isso.

Chegamos a conversar algumas vezes. Tentei lhe dizer que havia algo de encantador e único em cada dia da vida e que não se tratava de uma corrida de obstáculos.
Viver é um passeio de barco. Caminhamos rumo a chegada, mas o prazer está na vista.
Acredito que Ricardo nunca entendeu.

Um dia morreu. Preocupado com a conta de luz em cima da mesa.
http://coisasmalucasdeclarice.blogspot.com.br/2013/06/78-de-vida.html

Esse que me inspirou tanto que lhe fiz uma réplica [técnico que sou] poética [curioso que sou]. Pode ser lida tanto  quanto cá:
É que Ricardo nunca bebeu da fonte da juventude das palavras. Esse er ao seu problema. Ele se perdia com os números: números a pagar, números a conquistar, classes de números de que não participar, níveis de status a que chegar. E muitas pessoas se perdem entre os números. É verdade. Números são labirintos. O que acha que havia no labirinto que assustou tanto ao pai de Icaro a ponto de fazê-lo pensar em tentar o impensado?


O quê? Não foi o pai de Icaro? Acha que sabe de toda a história não é?Mas não sabes que ele ouviu a história e como gente que sente, gente que sabe onde está o outro e como é estar no lugar do outro se assustou. Porque estava sentido os números dentro do labirinto, os números que eram contra Teseu. E os números que logo seriam contra si. E intentou um salto "indo onde nenhum homem jamais esteve" mais alto do que sua altura. E conseguiu... Mas porque se prendeu às palavras. As dos pássaros mediterrâneos descreviam o maravilhoso ar que circula na altura cujo nome não é um número, mas um nome propriamente: o nome elísio de respirar da flama solar arrefecida pelo frescor do sonho.

Isso Ricardo, sincero e límpido, mas perdido com seus números não pôde, não poderia nunca ver.

Felizmente você ainda goza de engenhosidade e pode contar isso aos primos dos filhos de Ricardo. Pois tudo o que ele gerou foi um número com um nome também assustador chamado estatística.

Você pode, entretanto, entrar comigo nessa outra casa com um nome muito mais bonito. Você quer? Ah, sim, o nome? Poesia.